
Ariel Freitas | Sul
Verso 1
Invisíveis como o vírus que atravessa continentes
Solitários nas ruas que ligam tanta gente.
À margem da sociedade, na beirada da crise.
Encarando a realidade de um Estado tão triste.
Incríveis, pois ainda são histórias e rostos.
De Mários, de Marias e de Josés
Que conectam todos.
Política pá quem tá na rua é defender o seu dos outros.
Corona só revela quem são as prioridades quando se fala em povo.Entre latidos de cachorros e buzinas de carros: assim pode ser definida a rotina de Edmilson, manobrista de 35 anos e natural de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Dono de duas cadelas que herdaram os nomes de ícones e personagens que marcaram a sua infância, Xuxa e Kitana - a primeira, a apresentadora de televisão, a segunda é uma das protagonistas da série de videogame Mortal Kombat - o guardador de veículos divide com as duas cachorras a sua refeição diária e a pequena cabana improvisada com sacos de lixos no Parque da Redenção, onde carinhosamente chama o lugar de "Ilha de Alcatraz".
Localizado na zona central de Porto Alegre, o Parque da Redenção é um ponto histórico da cidade, que recebe esse nome em homenagem à libertação dos escravos do terceiro distrito da capital. Com árvores, lagos e pontos de recreação infantil pelo local, o clima aconchegante atrai moradores em todas estações do ano.
Em situação de rua há 6 anos, Edmilson larga um sorriso quando fala sobre o momento atual e explica: "as esquinas apresentam o que há de melhor e pior nelas: a vida." Praticante do espiritismo, o manobrista conta que as ruas foram esvaziadas com a pandemia e trouxe companhias novas de moradores que compartilham do mesmo contexto de desamparo. Esse cenário que escancara a falha de administração do Estado em proporcionar o direito à dignidade, igualdade e segurança, previstos no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, para qualquer cidadão brasileiro.Este também é o caso da Vila Nazaré, na zona norte de Porto Alegre, que mesmo durante a pandemia, enfrentou um processo de remoção. As moradias foram removidas para concluir o processo de ampliação da NOVA pista de voo do Aeroporto Salgado Filho. Com a continuidade do processo, as famílias da comunidade não conseguiram cumprir a principal recomendação dos órgãos de saúde contra o coronavírus: ficar na sua própria residência.
As consequências do despreparo e da falha de administração de quem deveria gerir a situação pandêmica impactaram diversos indicadores sociais, o que sem dúvida influenciou a rotina pelo país. Um deles é o desemprego que já estava com a porta entreaberta antes da chegada do coronavírus em solo brasileiro. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil alcançou o recorde de 13,5 milhões de pessoas sem emprego no mês de setembro de 2020.
Além de números e estatísticas, a pesquisa revela rostos e histórias. Como a do Seu Zé, de 53 anos e natural de Florianópolis (SC), que, em poucos meses de pandemia, vivenciou a montanha russa de uma transformação em sua vida. “Andante”, como se define, o artista decidiu sobreviver em situação de rua após não conseguir pagar o aluguel onde residia, pois os estabelecimentos comerciais que se apresentava com determinada frequência fecharam as portas. Sem casa, mas com uma mochila nas costas, Seu Zé resolveu mudar de cidade e tentar recomeçar em Porto Alegre.
“O corona tirou muita coisa de muita gente. Vida, dignidade e principalmente um lar. E esses políticos demonstram que não tão nem aí pra isso. Nós somos rostos e histórias, mas somos invisíveis. Talvez apenas números”, desabafa.
Apesar do sentimento de ser visto apenas como número, a invisibilidade da população em situação de rua é revelada na ausência de dados e estatísticas oficiais a respeito desses cidadãos. Por pré-requisitos de referência domiciliar nas pesquisas realizadas, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não possui um panorama em nível nacional sobre a vulnerabilidade vivenciadas por essas pessoas.
No entanto, em parceria com o Instituto Meta, o antigo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) realizou, em 2008, o primeiro estudo sobre a questão no Brasil. No Censo da População em Situação de Rua é possível identificar a precária situação em 71 cidades. A pesquisa apresenta, pela primeira vez no país, o perfil e dados destes brasileiros. No estudo daquele ano foram registrados 31.922 adultos em situação de rua, sendo 82% homens. Além da categoria de gênero, o Censo da População em Situação de Rua também identificou a etnia destes indivíduos: 67% das pessoas se declararam pardas ou negras.Nos últimos anos, os rostos e números de brasileiros que convivem com a situação de rua aumentaram drasticamente. A estimativa realizada em março deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apresenta um crescimento de 595% em comparação ao ano de 2008. O número aproximado demonstra 221.869 brasileiros sobrevivendo neste cenário. O Sul do país retrata 33.591 moradores enfrentando as consequências dessa adversidade diariamente. A chegada do coronavírus e as consequências econômicas e na área de saúde que a pandemia trouxe aumentaram os números da população em situação nas capitais sulistas. Em Porto Alegre, por exemplo, o crescimento foi de cerca de 20%, de acordo com o Centro Social da Rua. O abandono Estatal também pode ser observado em outras esferas. Entre elas, o transporte público.
“Eu trabalho todos os dias com produtos de higienização, mas nunca senti o cheiro deles em qualquer ônibus”
Verso 2
“Entre ônibus lotados e expedientes longos
Sem espaço para cansaço ou para corpos
Transmitindo a preocupação e ansiedade
De uns para outros ou de ponto em ponto?
Tanto faz.
Os boletos têm que ser pagos
Mesmo que o preço seja da saúde
Ao estrago.
Seguimos equilibrando no bonde
Que o vírus do abandono “Estatal”
Se esconde.”À espera de uma das tradicionais linhas de transporte público na Região Metropolitana de Porto Alegre, o coletivo Stella Maris, a empregada doméstica Leonice de Santos, de 60 anos, também aguarda a realidade compartilhada apenas pelos trabalhadores que são funcionários em pontos centrais e nobres da cidade. E que possuem a residência distante de onde trabalham: a preocupação com a lotação diária no ônibus durante a pandemia do coronavírus.
Entre um deslocamento e outro as rotinas, de Leonice e de outros trabalhadores que utilizam transportes públicos diariamente, compartilham a mesma incerteza com cuidados e prevenções dentro dos coletivos. Isso pois não há espaço para manter o distanciamento social recomendado pelos órgãos de saúde. De acordo com os dados disponibilizados na plataforma da Prefeitura de Porto Alegre, que separa a distribuição dos casos de coronavírus por bairros, as zonas que mais apresentam índices altos de contaminação — de 741 a 1825 — estão afastadas das zonas nobres e centrais da cidade.Com uma atuação de mais de 30 anos na área dos serviços de limpeza, Leonice explica que as condições de higiene presentes dentro desses veículos de uso coletivo são precárias. “Eu trabalho todos os dias com produtos de higienização, mas nunca senti o cheiro deles em qualquer ônibus”, questiona.
Na expectativa de contribuir com a diminuição de aglomerações e na circulação de pessoas no início da pandemia, a Prefeitura de Porto Alegre realizou uma série de decretos e de restrições ao uso do transporte urbano e de estabelecimentos comerciais na cidade. As principais bases estabelecidas nestas iniciativas foram a redução em 40% da frota de ônibus, o limite da capacidade dos veículos e o controle dos passageiros - restringindo o uso dos cartões de passagem escolar, por exemplo.
O cenário de superlotação dos coletivos urbanos em locais periféricos e distantes dos pontos centrais da capital é uma característica que se repete em outros Estados da região Sul. De acordo com Francielli Saczuk, estudante de Medicina Veterinária na UFPR, é possível perceber a diferença na quantidade de passageiros de uma zona a outra. Para ela, o nível de frota oferecido em locais mais nobres é nitidamente maior enquanto as outras convivem com a precarização dos serviços prestados. “Eu vejo o pessoal reclamando nas redes, nos portais de comunicação e em outros lugares que, desde o começo da pandemia, os ônibus que vão para a periferia estão lotados e que diminuíram a quantidade da frota”, explica.
Em outubro, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) identificou a circulação de ônibus cheios em Curitiba. O Órgão ressaltou que as medidas de distanciamento social são essenciais para o combate do coronavírus e que a situação inadequada representa um risco real à saúde dos passageiros. Na ocasião, a Urbanização de Curitiba (URBS) negou a acusação. Convivendo com esse cenário, os pontos mais afastados de Curitiba tiveram um aumento considerável em contaminação pelo coronavírus, segundo os dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).Situação parecida foi registrada em Florianópolis, capital de Santa Catarina. A Prefeitura Municipal decretou a proibição dos transportes coletivos no início da pandemia, mas, logo no primeiro dia de permissão da circulação dos ônibus, a superlotação foi registrada em alguns horários de viagem, contrariando uma das regras de segurança e prevenção do decreto (40% de capacidade).
Ao lado de outros indicadores, como o de raça, a localidade é uma base determinante no momento da disponibilização de recursos e mecanismos advindos dos poderes públicos para auxílio nos métodos de prevenção e de cuidados com a saúde da população. Seja fisicamente, psicologicamente ou ainda financeiramente. Tal forma de administração impactou uma determinada parte da população brasileira: a negra.“Na quebrada a gente não tem medo desse vírus, mas sim, de perder a nossa grana por causa dele”
Verso 3
No escuro, o pretinho some
No claro, ele é sempre procurado
De dia as balas que vendemos
Na noite em corpos negros é achado
Espremidos no meio do beco
Somos corpos negros pisoteados
No baile funk que causa medo
A high society rebola de salto
Bota a mão para o alto hoje é dia de lazer ê ê
O branco achou que era assalto eu mandei ele se foder ê ê!Apesar dos primeiros casos registrados de coronavírus no Brasil estarem relacionado às classes sociais com condições financeiras elevadas, os impactos reais do vírus foram refletidos no cotidiano periférico brasileiro. Dentro dos diversos fatores que contribuíram para a contaminação e propagação rápida do Covid nessas regiões, os principais são causas enraizadas desde a formação destas zonas: a vulnerabilidade e desigualdade social.
As consequências oferecidas pelo coronavírus para os moradores periféricos são várias e, entre elas, a condição instável da saúde física, mental e financeira. É importante ressaltar que a grande parcela de habitantes das periferias são considerados pardos e pretos e que, também, precisam encarar a realidade produzida pela pandemia no Brasil, que amplificou a falta de oportunidades de emprego.
Conforme revela os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios durante o Covid19 (Pnad Covid19), mais de 15,3 milhões de pessoas não procuraram trabalho por conta da pandemia ou por falta de serviço na localidade. Dentro destas estatísticas, 11,3% são consideradas pretas ou pardas - e apenas 7,0% brancas.
Tais dados apontam que a desigualdade racial brasileira aumenta a todo vapor, o que consequentemente, afeta a rotina dos moradores negros de periferias. Como é o caso de Geanderson Silva,de 24 anos e natural de Vacaria (RS). Trabalhando como ambulante há dois anos, via o movimento constante de pessoas na rua sempre significou possíveis clientes, vendas e oportunidade. Mas, com a chegada da pandemia, as aglomerações diminuíram e a confiança de comprar produtos de ambulantes também.
“As pessoas têm evitado comprar com quem trabalha diariamente e fica mais em contato com a rua. Acho que é mais por medo mesmo. Na quebrada a gente não tem medo desse vírus, mas sim, de perder a nossa grana por causa dele”, explica.É possível identificar algumas organizações que realizam ações essenciais durante a pandemia no #MapaCoronaNasPeriferias, do Favela em Pauta em parceria com o Instituto Marielle Franco. Na Região Sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), a maioria das associações cadastradas na plataforma estão localizadas em locais distantes da zona central da cidade. A criação e a ampliação deste projeto viabiliza a distribuição de recursos para os pontos periféricos de cada Estado e, além disso, auxilia na construção solidária de todos os lugares do país.
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O MAPA CORONA NAS PERIFERIAS
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