
As barreiras do cotidiano nas periferias.
Lia Soares | Sudeste
“Olha, não tem ninguém na rua, não vi ninguém no açougue, não tem ninguém lá pra abandonar. Olha, não tem ninguém na praça, só tem um sol sem graça, não tem ninguém para ver e contar” - Luz Vermelha, Elza Soares.
Nas primeiras semanas de março deste ano de 2020, consigo recordar que muito se comentava sobre a velocidade de um vírus que não se sabia muito bem de onde vinha e nem o que poderia representar na vida das pessoas. As primeiras informações que chegavam traziam consigo uma dose a mais de medo para toda a população mundial, e em especial, para pessoas moradoras de zonas periféricas que já conheciam os danos causados pela ausência do Estado.
Para além da rotina de medo constante, do olhar da mídia tradicional e até mesmo dos próprios governantes, desenhou-se um panorama que apontava para os estigmas velados que são presentes até hoje no cotidiano da favela. Sem que com isso assumissem a responsabilidade pela ausência no combate aos problemas que foram herdados de gestões anteriores. Não que isso tenha mudado, afinal, o fato do Estado não “querer” olhar para essas áreas, nos dá a entender que por mais que a ideia de um isolamento fosse apresentada para essa parcela da população das periferias, isso não seria tão novidade assim.
No contexto de uma crise sanitária, problemas como a falta de saneamento básico e mesmo a falta de água fazem parte da realidade nessas regiões conhecidas como “zonas periféricas” e certamente, isso seria um agravante para que os números de infectados e de vítimas fatais fossem expressivos. Infelizmente isso acabou acontecendo, mas foi amenizado em parte pela sagacidade e empatia das pessoas que trouxe à tona o desejo de preservar as pessoas que fazem parte de seus cotidianos. Através dessa potência, somando forças com diversos movimentos sociais e organizações que trabalham dentro da favela, estes grupos passaram a se organizar para conseguir trabalhar em suas articulações e garantindo que empresas parceiras pudessem contribuir financeiramente, com o objetivo de reduzir os danos que se aproximavam.
Aprendendo o que significava a covid-19, lembro de escrever uma matéria ainda nas primeiras coberturas da pandemia nas favelas, onde falei sobre as promessas que o prefeito da cidade do Rio de Janeiro começava a fazer. Promessas que comprovaram a irresponsabilidade da gestão atual que nunca se preocupou em combater os reais problemas de saneamento destas regiões. Um bom exemplo foi a promessa de instalação de pontos de água potável e sabão neutro para garantir higienização das pessoas, na tentativa de reduzir o contágio do novo coronavírus, o que até o momento da elaboração deste texto não foi cumprido.
No Complexo do Alemão, a preocupação chegou quando a mídia tradicional começou a falar sobre a gravidade da pandemia. Articuladores foram atrás de informações com o objetivo de entender qual era o risco que a população estava exposta. “Fomos nos informar e descobrimos que o vírus era realmente muito perigoso e a nossa preocupação maior era por saber que nas favelas a gente tem uma realidade muito diferente do resto do país. Quando se olha pra favela, a gente vê a população morando junto, entre becos e vielas onde tudo é muito próximo” conta Rene Silva, 26 anos, diretor do Voz das Comunidades. Com base na vivência favela, do cotidiano da periferia, era explícita a diferença na realidade do que se vê no contexto nacional, o que agravaria ainda mais a situação em uma pandemia que exigia um distanciamento social e posteriormente no isolamento determinado por lei.
Ficar em casa era um privilégio que só acontecia uma vez por ano para aqueles que trabalham no mercado formal. No primeiro momento a questão da quarentena de fato foi encarada como um período de “férias fora de época” e existia um desejo natural de voltar ao trabalho após os quinze primeiros dias. Após a conscientização desses coletivos sobre quais eram os riscos reais dessa pandemia, “Voz das Comunidades”, “Coletivo Papo Reto” e “Mulheres em Ação” tiveram a ideia de criar um gabinete de crise dentro do Complexo do Alemão para reduzir ao máximo os impactos que o novo coronavírus poderia causar.“Quando a gente começou a falar sobre a campanha do #FicaEmCasa, começamos a receber muitas mensagens de moradores perguntando como iriam ficar em casa se não tinham nem o que comer. As pessoas diziam ‘eu tenho que trabalhar, eu tenho que ir pra rua para conseguir o meu sustento’. A gente sabe que muita gente que mora na favela vive do trabalho autônomo, como camelôs, vendedores de lanches na praia, então, a partir disso começou uma grande preocupação sobre como a gente ia conseguir fazer uma campanha de conscientização para que essas pessoas ficassem em casa se as pessoas precisavam trabalhar? Então começamos algumas campanhas para conseguir doações. Essas primeiras doações não foram nem sobre alimentação em si, mas tínhamos a preocupação de conseguir água e material de higiene porque muita gente estava sem condições de comprar. E no período da pandemia os casos de falta d'água parecem piores, porque tivemos um problema crônico de falta d'água nas favelas do Rio de Janeiro.”
Rene Silva - Gabinete de Crise do Complexo do Alemão
Ao todo mais de 50 mil pessoas foram beneficiadas com o Gabinete de Crise do Alemão. 15 mil famílias tiveram acesso à cesta básica, materiais de higiene e limpeza. Como ponto positivo, o jovem líder que mais uma vez olhou com preocupação para a sua favela, pode perceber que o mundo inteiro estava se unindo para fazer valer todo o esforço feito por esses coletivos. Rene relatou que os coletivos não tiveram dificuldades para captação de recursos, que começou com contribuições de forma imediata de pessoas de vários países e também pelo movimento que muitas empresas fizeram para se aproximar da favela.
Ter fé por ser refém do medo
Meu pai que é morador do Complexo do Alemão é um homem preto de pele retinta, pernambucano e de meia idade, emigrou para o Rio de Janeiro no início dos anos 2000. Ouso afirmar que o meu empenho e admiração com a ideia de trabalho vem muito de uma observação pessoal minha para com ele. Ele nunca se atrasou para o expediente, nunca faltou um dia de trabalho (exceto em uma cirurgia que precisou fazer, mas ainda assim ficou triste por não ter ido) e nunca reclamou das oportunidades que recebeu. A ideia de parar e deixar de frequentar a empresa onde trabalha, não foi bem aceita para esse corpo que aprendeu que “o trabalho edifica o homem”. Certamente essa relação, ou melhor, essa “tradição” de não estar parado em casa vem de uma marca de uma ancestralidade que além da garra, tem também herança no medo do desemprego.
Esse medo sentido por meu pai, certamente não é solitário. Segundo dados divulgados no dia 23 de Outubro de 2020 pelo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) durante a pandemia de covid-19 a taxa desemprego chegou a 14% da população, somente no mês de Setembro. O Pnad é feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e na mesma edição da pesquisa existia uma informação ainda mais assustadora, de que a maior parte dos 14 milhões de desempregados estava concentrada na área mais populosa do Brasil, região sudeste (6,3 milhões), representando 39,2% dos desempregados.
O conceito de periferia é muito amplo e ultrapassa a geografia espacial
Os dados que revelam a alta no número de pessoas desempregadas no país certamente afetaram diretamente a saúde mental dos brasileiros que começavam a enxergar de forma mais nítida os impactos da pandemia. Mulheres transexuais, corpos diversos em sua sexualidade e gênero sofrem diariamente com a questão de terem seus corpos isolados, apagados e excluídos.
Em São Paulo, a Casa1, uma organização sem fins lucrativos direcionada a cuidar do público LGBTQIA+ passou a se debruçar na garantia do cuidado com a saúde mental das pessoas que já eram atendidas pela ONG. De acordo com Iran Justi, 31 anos, que trabalha com relações públicas, o trabalho de acolhida precisou ser interrompido durante a pandemia com o cuidado de não aglomerar pessoas em um espaço fechado. “Tivemos a sorte de perceber que algumas pessoas que estavam com a gente, com o acesso ao Auxílio Emergencial ou com a conquista de um emprego formal conseguiram ir para um lugar um pouco mais seguro nesse tempo de Covid-19.” relata.
Com a suspensão da acolhida (moradia para pessoas LGBTQIA+ em situação de rua) a importância da continuidade no acompanhamento se tornou a prioridade de organização, que manteve uma clínica social com cerca de 55 profissionais da saúde para atender demandas desse público. Para além desse acompanhamento, mais de 900 cestas básicas foram distribuídas para alunos e ex-alunos que participaram de cursos oferecidos dentro da Casa1.
“Estabelecemos um contato mais presente com os moradores que estavam em acolhida, com as meninas trans que precisavam tratar da questão da transição, da auto imagem e também em um trabalho de contenção com os números de violências que esses corpos sofreram e sofrem. Este trabalho é feito com uma equipe que conta com terapeutas ocupacionais, psiquiatras e psicólogos” conta Iran.
O Governo Federal começou a elaborar um plano de assistência financeira, o que representou uma segurança momentânea durante esse período para quem não tinha acesso à renda. Entretanto, a esperança de ter o acesso ao Auxílio Emergencial aprovado, demorou a se concretizar e a tradicional forma de pensar “de que as ONGs devem fazer o trabalho que o Estado não faz” ainda é o que prevalece até hoje.Por esse pão pra comer
A desigualdade social no Brasil é um fato que trás a tona as marcas que a colonização nesta terra e a escravização de pessoas deixaram em nossa sociedade. A falta de interesse dos grupos de poder e a tentativa incansável de apagar a responsabilidade dos brancos que atravessaram continentes e vidas ainda são defendidos com unhas e dentes. A fome é uma dessas feridas que ainda estão aparentes. Nos últimos 5 anos esse aumento chegou a cerca de 3 milhões de pessoas que não tem acesso regular a alimentação básica, realidade revelada pelo IBGE que somada a atual crise, que tem escala global afeta diretamente além da saúde, a nossa economia.
Em Belo Horizonte, uma força tarefa foi articulada para que os trabalhos que já eram feitos na maior favela da cidade ganhassem mais força para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. A Frente Humanitária criada por diversos coletivos e instituições no Aglomerado da Serra apresentavam além do desejo de cuidar dos seus, tinha como objetivo a redução da fome que é urgente, além dos impactos da covid-19, conforme conta a mestra em administração e coordenadora do projeto, Danielly Mendes, 26 anos.
“Desde antes da pandemia a associação de moradores sempre trabalhou e assistia mensalmente algumas famílias que são moradores do Aglomerado, com a entrega de cestas básicas. Quando começou a pandemia, por volta de 20 de Março, a gente começou a ficar bastante assustado porque chegaram muitas demandas na associação e nós não tínhamos como atender. Então, começamos a pedir ajuda a alguns parceiros, principalmente para a entrega de cestas básicas. Mas a gente percebeu que a necessidade não era somente de cestas, a gente precisava entregar o alimento já preparado porque muitos dos que nos procuravam estavam acamados e outras pessoas não tinham sequer estrutura para preparar sua comida. Então, já no início precisamos montar uma cozinha improvisada para dar conta de entregar cerca de 35 marmitas por dia para essas pessoas que realmente não tinham condições de preparar seu alimento.”
Com o avanço do desemprego, grande parte dessas pessoas perderam a sua principal fonte de renda. Como resultado, a demanda de uma assistência eficaz no Aglomerado da Serra foi aumentando de forma rápida e em poucas semanas, havia um banco de dados que já contava com mais de 6 mil famílias, em sua maioria com a necessidade do recebimento de cestas básicas e/ou marmitas.
“Falar sobre isolamento social estando dentro de um aglomerado de periferia e favela as vezes é meio redundante. As pessoas vivem aglomeradas, elas estão na maior parte do tempo assim porque moram em casas pequenas, porque é um barraco em cima do outro. Então é difícil conscientizar a população nesse sentido de que o vírus existe e que se ele chegasse na comunidade ele seria cruel, porque a gente já não tem um bom acesso à saúde. O contra-argumento também é válido, afinal, a sociedade e o Estado não estão preocupados com as pessoas que vivem aglomeradas. Elas estão aglomeradas para conseguir trabalhar no serviço essencial e com outras atividades que garantem sua renda. Na Frente Humanitária produzimos cerca de 60 mil máscaras de proteção pelo projeto Favelinha, onde a gente entregava essas máscaras durante a distribuição de cesta, na distribuição das marmitas. Fora as outras doações de álcool em gel, kits de limpeza e outras coisas que foram instrumento para que a gente pudesse trabalhar na etapa da conscientização.” relembra a coordenadora.
Durante três meses o projeto Frente Humanitária - que é resultado da somatória de forças do “ACM Cafezal”, “Lá da Favelinha” e “Instituto Unibanco” - conseguiu distribuir 18 mil cestas básicas, 18 mil kits de higiene, 60 mil máscaras e 168 mil marmitas para a população residente do Aglomerado da Serra, diante da ausência do Estado.O laço sempre fecha
A romantização da miscigenação dentro do nosso país sempre colaborou para que a desigualdade seja ainda parte cotidiana da realidade do povo brasileiro. As narrativas se dividem. Afinal, o que é ser periférico? A periferia é resultado de uma constatação de exclusão que ultrapassa a questão geográfica. Ela transita todos os dias pela cidade, em múltiplas formas. O povo preto sofre com as múltiplas formas de racismos que a sociedade branca luta com muito empenho para manter e possibilitar que se perpetue. Os corpos de pessoas trans e travestis sofrem na corrida de uma constante sobrevivência para que ao menos consigam enxergar seus corpos e ter garantido o direito a uma vida digna. Os mais pobres sofrem com o sistema que os ilude: onde o trabalho funcionaria como garantia a utopia de lazer e descanso, que ainda ontem foi chamada de aposentadoria.
A corrupção durante a compra de equipamentos e respiradores para o Sistema Único de Saúde (SUS) obrigou os noticiários a separar o protagonismo dos boletins sobre os novos casos de Covid-19 para contar o enredo já conhecido do povo. A desinformação e falta de clareza sobre os riscos do vírus pareceu se tornar tarefa essencial para o Governo que desconhece o poder da ciência. Historicamente a saúde sofre com o sucateamento e está ainda mais em risco quando se fala sobre a privatização que busca elitizar o acesso. É isso que nos coloca na mesma página.CONTINUE LENDO...
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O MAPA CORONA NAS PERIFERIAS
540 Iniciativas mapeadas em todo Brasil, alcançando mais de 600 favelas e periferias do país.
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